Raduan Nassar

UM COPO DE CÓLERA, POR FAVOR

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Sabe quando você vê um filme e pensa: eu quero um amor assim?

Esses dias, eu vi um chamado Blue Valentine (em português, “Namorados para Sempre”) e pensei: não é isso que eu quero.

Só que tem um problema: normalmente os filmes de amor acabam na parte boa, ou então dramatizam tanto o amadurecer do sentimento que a coisa toda fica muito irreal. Blue Valentine não. Ele começa justamente num momento de crise – os dois já não se entendem como antes, mas não fica só nisso. Durante o filme, tem vários flashbacks de quando eles se conheceram, dos primeiros dias, do encanto do início. É como ver num filme só, o começo e o fim de um amor: os dois misturados, dividindo o espaço, como que justificando um ao outro.

É real demais. E, às vezes, o real assusta a gente.

A menina de colégio é desiludida pela vida, tem que começar a trabalhar e numa carreira que não escolheu. | O namorado é um sonhador, daqueles bem românticos, e ama a menina mais que tudo. | Os dois se casam. –  Será que dá certo?

Dá. Eles se amam tanto e precisam tanto um do outro, que começam a construir um relacionamento bonito, daqueles que um pouco contato visual já é suficiente pra fazer o olho marejar. Vem o casamento, uma filha, alguns anos. As coisas começam a não funcionar mais. Parece que nenhum dos dois estava muito preparado pra lidar com a realidade. No começo do filme, ele apaixonado diz: “Maybe I’ve seen too many movies, you know.” E realmente, os dois devem ter assistido filmes demais… E, apesar de todas as lições que uma tela de cinema pode trazer, parece que ela não ensina como é a vida de verdade. Mas pô, no começo, quando a gente se apaixona, não é hora de pensar nessas coisas! É só sentir aquele toque e olhar fundo nos olhos. A conclusão é fácil: tô apaixonado. – “I don’t know, I just got a feeling about her. You know when a song comes on and you just gotta dance?” E você dança junto.

Esse é começo, mas o que vem depois?

Depois vem um copo cheio que os dois vão tomar aos poucos: o copo de cólera. As brigas, os lugares diferentes pra dormir, os gritos e a criança deixada ao largo, pra não escutar. No filme, o menino romântico abraça a mediocridade e a menina preocupada fica sisuda, deixa de rir. Todas as coisas se acumulam e culminam numa palavra dura: “Eu não te amo mais. Não tem mais nada aqui pra você.” E aí, como consertar isso?

Raduan Nassar sabe como. E ele tenta ensinar pra gente no seu livro Um Copo de Cólera.

Tudo começa com outro casal, na manhã seguinte ao amor, um banho a dois. Aquela clima bom de intimidade partilhada e a alegria que a saciedade dá. Mas basta uma pequena coisa qualquer – no caso, algumas formigas-saúva e as plantas arruinadas – pra elas acabarem com tudo: as palavras, as palavras duras.

“Não que me metessem medo as unhas que ela punha nas palavras, eu também, além das caras amenas (aqui e ali quem sabe marotas), sabia dar ao verbo o reverso das carrancas e das garras, sabia, incisivo como ela, morder certeiro com os dentes das idéias.” [41]

Os dois começam a brigar: o ex-ativista e a jornalista politizada, jogando na cara os defeitos do outro, ridicularizando seus ideais, seus comportamentos. O livro é curtíssimo – só 85 páginas – mas quase todas são usadas pra descrever uma briga, uma das mais incríveis a que eu já assisti. E, como é a discussão de duas pessoas que a gente não conhece, não vem aquela sensação ruim, sabe? A angústia que uma briga traz. Fica só o aspecto objetivo, o aprendizado. Raduan mostra como coisas pequenas podem trazer à tona nossas raivas, nossos medos e o principal: nossa personalidade.

Por que dissemos aquela frase dura justamente na pior hora? Pra que esconder o que sentimos com palavras vagas? Por que não enfrentamos os problemas cara a cara e não somos mais claros quando vamos falar? Fácil: porque a gente é assim, é assim que a gente age. E diante da nossa personalidade, o que foi dito às vezes importa muito menos do que o “quando”, o “como”. “E já que tudo depende do contexto, que culpa tinham as palavras?” [52]

Nenhuma, Raduan. A culpa é nossa! A gente é que toma o copo de cólera até a última gota. E quando o líquido inflamável passa pela garganta, alguma coisa se move dentro do nosso corpo. Aquela raiva vai subindo, vindo à tona. A pessoa diante de nós parece que nem existe mais, o que existe é aquela raiva, a vontade de pôr tudo pra fora. Perdemos a consciência de quem somos, de quem o outro é e, no momento de briga, parece que só existem duas coisas: nossa mágoa e aquele sentimento ruim que sobe pela garganta.

“Confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa.” [67]

Realmente, a gente não sabe que virou fascista também. Mas virou.

Em algum momento, os dois param de discutir e vem a consciência: quem eu sou; quem ela é; o amor que eu sinto, ou senti. A gente lembra. E é nesse momento que vem a lição mais preciosa do livro de Raduan: a razão não é totalmente subjetiva, ou melhor, não deve ser. Se algumas coisas nos magoam demais e a nossa lógica formula um julgamento, uma sentença praquele parceiro, pro relacionamento: é hora de parar. Por que não colocar um pouco das nossas lembranças nessa objetividade? Por que não macular a lógica com um pouco de subjetividade, com amor? Tudo bem, não está dando certo. Mas lembra aquele dia que vocês dançaram juntos, aquele olhar, os dias bons. Lembra da proximidade física e das mãos dadas. Lembra do que te faz irracional, e enfia um pouco disso na tua lógica. Pode ser que dê certo, talvez não. Mas tenta. Às vezes, a racionalidade pura é meio cruel.

Se Raduan pudesse dar um conselho a vocês e ao casal de Blue Valentine, acho que ele diria o mesmo que disse a mim alguns anos atrás:

Mais cuidado nos teus julgamentos, ponha também neles um pouco dessa matéria ardente.” [74]

Até porque, no fim das contas, nós só esperamos que haja alguém. Alguém que tome conta do nosso coração e que seja bom pra encostar, quando a gente estiver cansado.

Duvido você passar incólume por esse livro, esse filme ou essa música.

Especialmente por essa música.

Eric